«A Maia tem escolas com asas. Permitamos que os nossos alunos as usem da melhor forma»
Após o sucesso da quinta e última edição do encontro sobre educação com maior sucesso nacional, estivemos à conversa com o Marco Bento, professor e coordenador do projeto SUPERTABi. Há cinco anos na Maia, e num formato diferente, com sessões emitidas online, esta edição contou com mais de quatro mil participantes.
Marco Bento é natural de Coimbra. Licenciado em Ensino Básico – 1.º Ciclo, e Mestre em TIC, na especialização de Comunicação Multimédia, ganhou, em 2015, uma Bolsa de Mérito Académico pelo seu percurso no Ensino Superior.
Tem tido o reconhecimento internacional com prémios europeus, sendo atualmente investigador no Centro de Investigação em Educação (CIEd), da Universidade do Minho, estando na fase de conclusão do Doutoramento em Ciências da Educação, na especialização de Tecnologia Educativa.
Hoje, é também consultor pedagógico e assumiu, desde janeiro de 2020, a Direção Pedagógica no Colégio Santa Eulália, em Santa Maria da Feira.
Coordena, desde há 4 anos, o Projeto SUPERTABi, que nos diz ser «mais do que uma materialização de algo físico, é uma transformação profunda do que significa ser professor, ser aluno e ser escola nos dias de hoje». Em entrevista ao Maia Hoje, o professor foi muito para além do que é o projeto que tem sido um sucesso em terras do Lidador. Será a “escola do futuro” um presente? Estará a escola do Séc. XXI ultrapassada? Terá vindo a pandemia “forçar” a utilização de métodos que deveriam ser já uma constante? Estas são algumas das questões que Marco Bento não deixou sem resposta.
Maia Hoje (MH): O encontro anual sobre educação SUPERTABi, o maior a nível nacional, este ano, pela primeira vez, num formato diferente, reúne cada vez mais participantes. O que é, na verdade, o projeto SUPERTABi e como nasce?
Marco Bento (MB): Há que clarificar as diferenças entre o Projeto SUPERTABi e o Encontro Internacional sobre Inovação Pedagógica SUPERTABi. Ou seja, na realidade, e obviamente, estão relacionados, mas o Encontro decorre do Projeto, embora tenha ganho uma vida muito própria enquanto espaço de discussão e debate sobre a Educação.
Os Encontros SUPERTABi nascem de um processo de disseminação de um projeto com o mesmo nome, no âmbito de uma investigação do Programa Doutoral financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É um projeto que coordeno, sendo o resultado da minha tese de doutoramento em Ciências da Educação, na Universidade do Minho.
O Projeto SUPERTABi, nasceu há 5 anos como estudo de caso em duas escolas do concelho da Maia, e teve como principal objetivo transformar as práticas pedagógicas dos professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico, através do uso de modelos pedagógicos centrados no aluno e mediados por tecnologias móveis, potenciando os novos espaços de aprendizagem.
São exemplos, a aprendizagem invertida, aprendizagem com jogos, a gamificação, aprendizagem baseada em projetos, o Digital Storytelling, o trabalho cooperativo e o trabalho colaborativo, sempre mediado por e com tecnologia, nomeadamente, móvel. Como projeto considerámos sempre três dimensões como sendo fundamentais neste processo de transformação pedagógica: a Pedagogia, a Tecnologia e o Espaço – as três dimensões estão em igualdade de circunstância quando se leciona. Ou seja, partir do princípio que para qualquer tarefa de aprendizagem o professor tem um objetivo que deverá estar estreitamente ligado a algo de significativo para o aluno, mas que considere sempre a tecnologia que mais se apropria ao desenvolvimento dessa tarefa, bem como a definição e reorganização do espaço (layout, espaço físico ou virtual). Sabemos hoje, que os alunos aprendem melhor quando controlam o seu processo de aprendizagem e também sabemos que não se ensina ao aluno o que um aluno pode aprender por si. Assim, o Projeto SUPERTABi é mais do que uma materialização de algo físico, é uma transformação profunda do que significa ser professor, ser aluno e ser escola nos dias de hoje… num tripé entre pedagogia, tecnologia e espaço, no qual a falta de um deles, deixa de funcionar.
Por outro lado, com os Encontros SUPERTABi procuramos questionar o posicionamento do ser professor em relação ao seu processo de aprendizagem ao longo da vida e motivar ou reencantar para esse processo. Estes momentos têm o intuito de despertar novas práticas, inspirar com novos modelos pedagógicos com tecnologia, possibilitando uma adequação ao mundo digital na e para a escola deste século. Sabemos que a tecnologia não vai substituir os professores, porém, os professores que utilizam a tecnologia vão, muito provavelmente, substituir os que não a utilizam!
MH: Como descreve a escola do séc. XXI? Na sua opinião, poderá, neste “novo” século, a aprendizagem ser feita em qualquer hora e em qualquer lugar, apenas com a distância de um clique?
MB: A Escola do século XXI está muito idêntica à do século anterior e esse é o maior problema. Ou seja, enquanto que a sociedade vai evoluindo, e nesse caso podemos falar de diferentes áreas da sociedade, como a medicina, os transportes, a justiça,… na Educação tudo é muito lento, quando deveria ser ao contrário, deveria ser a Educação a liderar os processos de inovação social. É fácil percebermos, se compararmos um bloco operatório do século passado e um dos dias de hoje, e a diferença é abismal, muito mais tecnologia e ambientação a novos espaços, sendo que qualquer um de nós se recusaria ser operado num bloco do século anterior, uma vez que percebe claramente que, hoje, a tecnologia existente garante uma maior taxa de sucesso. Ora, sabemos, por diferentes estudos, que na Educação, o uso de tecnologia, não de forma forçada, mas de forma natural, como quem usa uma caneta ou uma tesoura, potencia as aprendizagens e leva os alunos a uma descoberta muito mais além… ainda assim, muitas são as escolas que não o fazem.
Na realidade, a escola deixou de ser o espaço de transmissão de conhecimentos, mas sim o espaço de monitorização e promoção da procura e pesquisa dos mesmos. Será que apenas na “Escola” garantimos o único espaço e tempo para aprender? Não, a “Escola” há muito que deixou de ser o único espaço e tempo de conhecimento, porque o fenómeno da ubiquidade (aprender a qualquer hora em qualquer lugar) está entre nós, simplesmente, porque quando temos uma dúvida procuramos a resposta, se não sei algo sobre a cidade onde estou, rapidamente encontro opções e informação, consigo fazer uma operação matemática, uma pesquisa em qualquer biblioteca do mundo, ouvir um áudio, ver um tutorial em vídeo, e deste modo, sabemos que os alunos não têm dificuldade em encontrar a informação, mas têm uma enorme dificuldade em diagnosticar quão fidedigna é a mesma. Ou seja, a escola é o espaço ideal para ajudar a recolher informações fidedignas, sabendo que 95% do que está na web não é fidedigno, há que ajudar os alunos (diria até a população) a entender e identificar fontes de informação corretas e combater as fake news. O desafio da escola é promover trabalho em projeto, em colaboração, desenhando de forma articulada intervenções pedagógicas que levem o aluno para um mundo real, que saiba que está a trabalhar com um contexto do seu quotidiano e não com problemas que nunca encontrará na sua vida. O aluno tem de ser mais produtor do que consumidor e para isso as atividades têm de ser planeadas para essa circunstância, de forma a que de um desafio, de uma ideia, nasce um produto, que induzirá o aluno no pensamento crítico e na melhoria da sua comunicação.
Em relação aos recursos de hardware, é essencial que nos lembremos que nem todos os alunos e professores têm um dispositivos digital ou acesso à internet, e isso implica com um fenómeno de equidade que não pode e nem deve ser deixado ao acaso, sobretudo, quando falamos tanto, hoje em dia, de educação inclusiva, por isso o Projeto SUPERTABi com o apoio imenso da autarquia tem entregue um tablet e acesso à internet nas escolas, de modo a garantir esta equidade de acessos, e sem este apoio seria muito mais complicado. Embora os equipamentos digitais são a parte visível do projeto, a forma como são usados e os modelos incrementados fazem do professor SUPERTABi alguém com outra visão sobre a escola atual.
MH: Poderá dizer-se que parece tratar-se de um contrassenso quando há pouco tempo atrás o uso de dispositivos móveis era proibido nas salas de aulas e hoje se incute, neste novo cenário de inovação pedagógica, essa utilização?
MB: Não considero ser nenhum contrassenso, uma vez que a proibição do uso de dispositivos móveis nas salas de aula não é assim tão verdade. Se repararmos, o Estatuto do aluno, uma lei de 2012, Lei 51/2012 de 5 de setembro (Estatuto do Aluno), na sua secção II, artigo 10º, alínea r) já refere para “Não utilizar quaisquer equipamentos tecnológicos, designadamente, telemóveis, equipamentos, programas ou aplicações informáticas, nos locais onde decorram aulas ou outras atividades formativas ou reuniões de órgãos ou estruturas da escola em que participe, exceto quando a utilização de qualquer dos meios acima referidos esteja diretamente relacionada com as atividades a desenvolver e seja expressamente autorizada pelo professor ou pelo responsável pela direção ou supervisão dos trabalhos ou atividades em curso”. Assim, a exceção da lei permite essa utilização, e o mais curioso e até ilegal, é que muitos são os Agrupamentos de Escolas que retiram a exceção dos seus regulamentos internos, tentando manter uma proibição ilegal, uma que vez que estamos na presença de uma lei geral. Assim, já há oito anos que está previsto na lei, como passou a estar também previsto numa série de leis europeias, quando se tenta passar a mensagem contrária da sua proibição. O que passou foi a legislar-se algo que não tinha legislação. É uma verdade que serve de argumento para manter algum controlo nas salas de aula, pelo menos hipotético, porque sabemos que os alunos, como sempre tiveram capacidade de ultrapassar proibições, mesmo no tempo que não se usava o digital! A Escola se não for o espaço de Educação privilegiado, então estamos a perder a intenção e propósito da escola. Faço sempre esta comparação com a faca e o garfo, se pensarmos que os talheres são perigosos e todos os dias usados na escola, porém os alunos aos 2/3 anos passaram por um processo de educação para a sua utilização, de modo a que agora noutros ambientes os usem para o bem e não para o mal. Os dispositivos móveis, os telemóveis têm de passar pelo mesmo efeito, mas para isso é preciso criarmos experiências em contexto educativo, não esquecendo que nós adultos estamos a aprender no mesmo momento que estamos a ensinar, por isso os receios.
MH: Deixamos de ter professores que se limitam a “despejar” informação? Como se moldam estes profissionais a este novo conceito?
MB: Com formação desenhada à medida e não com pacotes de formação sem formato que é despejada diariamente pelas e nas escolas. Acredito, que enquanto o modelo de formação continua de professores for baseado em progressão de carreira pouco significativo e sem uma avaliação condicente, a única forma que temos é por encantamento… que é nisso que se tornou o projeto SUPERTABi, num momento em que conseguimos encantar os professores para novas formas de ensinar, estando presente para partilhar práticas, ajudar colegas dentro das salas de aula, momentos de acompanhamento na redefinição de práticas, conversas pedagógicas,…
O que temos, hoje, são um conjunto de professores no concelho da Maia, que se enquadra numa perspetiva de ensino e aprendizagem baseado nas competências e tendo sempre em vista as denominadas soft skills em grande articulação com as chamadas hard skills, ou seja. O que temos vindo a fazer nos últimos 5 anos, são diferentes momentos de formação, no caso do Projeto SUPERTABi, quase semanais, onde nos encontramos na Antiga Escola Primária de Pedras Rubras ou online, atual espaço inovador de aprendizagem Make it Pedagogical, certificado pela Direção Geral de Educação como o local de formação de professores, ou como gosto de lhe chamar, a casa do professor SUPERTABi. Neste espaço e tempo semanal, os professores partilham as suas práticas e em colaboração desenhamos novas, para que possam aplicar e voltar na semana seguinte com o feedback e assim vamos redefinindo uma prática pedagógica, num modelo cíclico de aprendizagem.
MH: Temos, neste momento, na Maia professores preparados e inspirados para estas mudanças?
MB: Os resultados que tivemos e vamos tendo foram bastante satisfatórios, uma vez que os alunos que iniciaram este processo, nas duas escolas do estudo de caso intervencionadas melhoraram bastante os seus resultados escolares, principalmente ao nível do Português, do Inglês e das Ciências, mas, sobretudo, foi ao nível das chamadas soft skills que mais se notaram as diferenças. Alunos muito mais autónomos, com pensamento crítico e argumentação sobre os mais diversos assuntos, com um maior poder de comunicação e número de vocabulário, uma criatividade na produção de conteúdos e acima de tudo, algo que deverá ser sempre tido em conta numa escola, alunos envolvidos nos processos de aprendizagem, que é algo muito mais importante que a motivação, porque a envolvência traz a felicidade… e estes são alunos felizes na escola.
Com base neste processo, que conta também com uma forte componente na formação de professores, uma vez que realizámos mais de 100 horas de capacitação dos professores, para a redefinição das suas práticas pedagógicas, então avançámos para o Projeto SUPERTABi Maia, que nasce da vontade de cada um dos Agrupamentos de Escolas da Maia. Como educar é uma parceria de todos os intervenientes na sociedade, a Câmara Municipal da Maia é um dos parceiros estratégicos deste processo, pelo apoio ao nível dos recursos técnicos, tecnológicos e de organização do espaço, tem sido fundamental e inexcedível desde o início de todo o projeto. Outro parceiro fulcral é a FapeMaia, também desde o início mostrou sempre disponibilidade para encetarmos sessões de esclarecimento com os pais, que são parte fundamental nestes novos processos de aprendizagem. A supervisão pedagógica é coordenada por mim, através da aplicação dos modelos de formação com os professores que integram este projeto a partir de agora. Necessário dizer que a formação decorre ao longo do ano, num processo de formação prática, em contexto.
Assim, tendo o projeto iniciado com 7 escolas, uma por Agrupamento, temos neste momento 14 professores e praticamente a dar o passo para 28 ainda durante este ano letivo. O que fazemos são momentos de formação prévios e a seleção dos professores é feita por proposta entre o professor e as direções dos agrupamentos e quando terminam o primeiro bloco formativo pela ilustração das suas competências na formação.
Assim, contamos com os professores Carla Maia, Ercília Silva, Manuel Morais, Cristina Alves, Isabel Soares, Nélia Gomes, Sónia Antunes, Sara Fonseca, Cármen Pinto, Ema Silva, Luís Coutinho, Cláudia Coelho, Ana Paula Cruz e José Sousa. Estes são os nossos 14 professores SUPERTABi.
MH: Qual tem sido o exemplo do município da Maia nesta matéria? Pode dizer-se que, de acordo com o escritor Rubem Alves, a Maia já é uma escola com asas?
MB: Naturalmente, a Educação só acontece com a colaboração de todas as partes e a Câmara Municipal da Maia é o elo que une todas as partes de há bastante anos para cá. É muito interessante perceber que o Município da Maia sempre teve uma enorme aposta na Educação, sendo uma das suas bandeiras, e como acredito, a Educação não pode ser vista como um encargo e uma despesa, mas como investimento para o presente e futuro dos cidadãos… e a Maia é assim que pensa a Educação. Deste modo, o suporte e apoio pessoal, do Senhor Presidente da Câmara Municipal da Maia, Engenheiro António Silva Tiago e da Senhora Vereadora do Pelouro da Educação Dr.ª Emília Santos, tem sido imprescindível e mais do que isso, fulcral para que a Educação do concelho seja um exemplo no nosso país. É muito curioso, e muitas pessoas como estão mais fechadas dentro do concelho, não terão a noção, quando visito outros municípios e outros países, comparando com as condições que o concelho da Maia oferece, sejam físicas, pedagógicas, tecnológicas, é absolutamente inspirador a nossa realidade. Portanto, penso que sim, a Maia tem escolas com asas, permitamos que os nossos alunos as usem da melhor forma e acima de tudo para voar, porque muitas vezes, podemos ter as asas e não saber que utilidade lhes dar.
MH: Acredita que a escola “digital” que, por força das circunstâncias atípicas atuais, fomos obrigados a implementar, poderá ser a solução e o futuro do ensino?
MB: O Professor António Nóvoa referia-nos em setembro, nos Encontros SUPERTABi 2019, na Maia, que temos desde há muito escolas do século XIX, com professores do século XX e alunos do século XXI. Ora, estas premissas ajudam a perceber algumas das dificuldades que experienciamos hoje, com as diversas pandemias, neste caso, a digital, para a qual também os professores não estavam, de todo, preparados.
As escolas portuguesas estavam a ser, e muito bem, reconstruídas com espaços educativos mais modernos, com atração arquitetónica e também num formato mais tecnológico, ou não existissem pelo país mais de 300 espaços denominados “Salas de Aula do Futuro”. Estas salas estão equipadas com computadores, tablets, impressoras 3D, quadros interativos, mesas digitais, kits de robótica e outros equipamentos digitais. Por outro lado, a pouca aposta na formação contínua de docentes para que essa utilização dos espaços educativos e para que as “novas” tecnologias instaladas não fossem apenas do foro técnico. Alguns municípios e algumas lideranças das escolas manifestam uma visão curta para a Educação, e não aproveitaram o momento para dar tempo aos professores para repensar e desenhar modelos pedagógicos para cada uma das suas escolas, que lhes permitissem ter um modelo educativo colaborativo e flexível para a aprendizagem. Mas para repensar necessitamos de direções pedagógicas que tomem esse caminho, que ajudem o seu corpo docente a reencontrar a sua profissão de aprender ao longo da vida, reaproveitando todas as potencialidades do conhecimento para redefinir estratégias. Fácil é perceber que são esses os casos de sucesso nesta Educação pós-Covid, como são o caso das turmas SUPERTABi, por terem tido experiências pedagógicas prévias à pandemia.
Acredito que este não é o futuro, é há muito um presente que estamos, enquanto sociedade, a ignorar e a tentar travar, pelo medo dessa implementação. A Escola Digital é usada em muitos contextos há muitos anos, mas lembremos que não é uma passagem do analógico para o digital, mas sim uma convivência natural entre ambos, esse é o modelo que temos vindo a implementar, porque a relação pedagógica é sempre gerida entre o professor e o aluno, a emoção da aprendizagem não é retirada pela tecnologia, mas sim fortalecida!
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